Tanto na Constituição Federal (Art. 70), quanto na Estadual (Art. 122), vemos que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Estado e das entidades da Administração Direta e Indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, deve ser exercida pelo Poder Legislativo, mediante controle externo e pelo sistema de controle interno de cada Poder. Nos mesmos artigos de cada Constituição, fica determinado que qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos, ou pelos quais o Estado responda ou que, em nome deste, assuma obrigações de natureza pecuniária, terá obrigação de prestar contas.
Entretanto, quando se verificam os dispositivos das leis estaduais que instituíram o Vale-Transporte, a Bilhetagem Eletrônica e o Bilhete Único, todas as prerrogativas são passadas diretamente para as operadoras e seus representantes diretos, tais como os sindicatos patronais e sua federação estadual (FETRANSPOR). Essa total leniência com a ação das empresas de ônibus e, mais tarde, com as concessionárias privatizadas dos modais metro, ferro e hidroviários fez com que o sistema atualmente esteja completamente à deriva das circunstâncias e que o Poder Público tenha cada vez menos capacidade de fiscalização, planejamento e gestão.
Não é razoável que os bilhões de reais que circulam no sistema de transportes urbanos e regionais do Estado não sejam passíveis de controle público. Não é razoável que os recursos do Fundo Estadual de Transporte público dependam única e exclusivamente da caneta do secretário.
O presente Projeto de Lei apresenta um roteiro para adequar a estrutura do governo do Estado para tomar posse do sistema de transporte público. Em primeiro lugar, ficam instituídos a Política Estadual de Mobilidade Urbana e Regional e o Sistema Estadual de Transporte Público e Mobilidade. Com isso, o Estado do Rio de Janeiro passa a ter um marco regulatório estável, coeso, abrangente e integrado para conduzir o processo de reorganização do sistema de transportes, auxiliar o desenvolvimento institucional dos Municípios e regiões na questão da mobilidade e assumir, de uma vez por todas, o controle público dos fluxos financeiros e do padrão operacional dos diferentes modos de transporte.
No que tange ao Sistema Estadual de Transporte Público e Mobilidade, são propostas a criação de dois órgãos: uma empresa pública com atribuições de planejamento, coordenação, fiscalização e gestão do sistema e um conselho que garanta o controle público, a gestão democrática e a transparência de planos, ações, contas e procedimentos operacionais em todo o Estado, entre outras atribuições.
Além da criação desses dois órgãos, o sistema prevê a criação do Fundo Estadual de Transporte Público e Mobilidade, de modo que ele possa ser incorporado a esse novo ambiente de transparência, interesse público e planejamento integrado. Nos últimos cinco anos, foram mais de 2 bilhões de reais repassados do fundo para as empresas operadoras, com praticamente nenhum controle ou debate público acerca da efetividade dos instrumentos adotados e da pertinência de tais valores. Já é público e notório que a política tarifária no sistema de transporte público é totalmente conduzida pelas empresas. Esse cenário está na raiz de todos os grandes problemas vivenciados pela população no seu cotidiano.
Uma ampla reforma do modelo institucional de transportes é urgente. O Estado do Rio de Janeiro parece que ainda está na década de 1950 no que tange à gestão de seus transportes públicos. Não é razoável esperar que a maioria dos nossos pobres municípios consigam fazer frente aos poderosos grupos econômicos de transporte instituídos ao longo de todas essas décadas, por sua própria conta. O atual marco regulatório padece de flagrante inconstitucionalidade. A Lei 42.91/2004 instituiu o sistema de bilhetagem eletrônica no Estado e, em seu art. 5o, entrega diretamente o controle dos fluxos financeiros para as empresas operadoras privadas e seus representantes patronais:
“Art. 5º – As delegatárias dos serviços públicos de transporte coletivo de passageiros por ônibus serão responsáveis pelo custeio, implantação e gerenciamento do Sistema de Bilhetagem Eletrônica, assegurado ao Poder Público o acesso às informações processadas pela Central de Controle e necessárias ou úteis ao planejamento e fiscalização do Sistema pela Secretaria Estadual de Transportes.
§ 1º – Para os efeitos desta Lei, entende-se como Central de Controle o local onde são processados, em hardware e software específicos, todos os dados gerados pelo Sistema de Bilhetagem Eletrônica.
§ 2º – O equilíbrio econômico-financeiro do controle será preservado.
§ 3º – É permitida a subdelegação das atividades de implantação e gerenciamento do Sistema exclusivamente a entidades sindicais representativas de delegatárias.”
Mais recentemente, quando da implantação do Bilhete Único Estadual e do próprio Fundo Estadual de Transportes (LEI 5628/2009), as irregularidades se aprofundaram, ao submeter diretamente a entrega de recursos públicos para entes privados que sequer possuem contrato de prestação de serviços públicos nos termos da legislação federal:
“Art. 6° Excluídos os portadores de Vale-Transporte e de cartão expresso, que poderão ser utilizados como Bilhete Único nas viagens, os demais usuários poderão adquirir o Bilhete Único nos locais previamente indicados.
§1º Para os demais usuários, será emitido cartão eletrônico, denominado de Bilhete Único, somente utilizado nas integrações entre modais ou em cada um deles entre si, que será utilizado no Sistema de Bilhetagem Eletrônica instituído pela Lei nº 4.291, de 22 de março de 2004.
§2º Os concessionários de Barcas, Metrô e Trens são obrigados a disponibilizar o Bilhete Único para venda em seus guichês.
§3º A FETRANSPOR é obrigada a disponibilizar o Bilhete Único para venda em todos os seus pontos de vendas do RioCard.”
No caso do Fundo Estadual de Transportes, não está previsto nenhum mecanismo de controle público. Toda a responsabilidade pela utilização dos recursos fica circunscrita à cabeça e à caneta do secretário estadual de transportes (Lei 5628/2009, Art. 16). O único mecanismo de controle, por parte do Poder Público, foi, agora, completamente desprezado pelo secretário:
“Art. 18. O Fundo será gerido através de uma Unidade Orçamentária específica no Orçamento, que divulgara semestralmente o quantitativo de bilhetes únicos expedidos assim como os respectivos valores.
§1º A não-disponibilização do relatório previsto no caput deste artigo implicará no descredenciamento da concessionária ou permissionária do sistema do Bilhete Único intermunicipal.
§2º. A Secretaria de Estado de Transportes definirá e as concessionárias ou permissionárias implantarão em prazo hábil, uma Câmara de Compensação Tarifária com sistema eletrônico, devidamente auditável, para partição entre as mesmas dos valores dos serviços prestados e subsidiados, permitindo o acesso eletrônico em linha e em tempo real, a todas as informações relativas ao uso do Bilhete Único ao Poder Concedente (Secretaria de Estado de Transportes).” (Lei 5628/2009)
O colapso da mobilidade já é uma realidade. Não é mais possível submeter nossa população aos caprichos de meia dúzia de empresários e seus representantes na estrutura do Estado. Só uma política de transparência total, controle público e gestão democrática do sistema pode neutralizar ou, pelo menos, dirimir tais descalabros.
O atual marco institucional do sistema de transporte apresenta duas categorias de empresas: as operadoras de transporte público (permissionárias e concessionárias que atuam nos diferentes modais em linhas urbanas e regionais), e as empresas que constituem o grupo RioCard (RioPar Participações S/A, RioCard Administradora de Cartões e Benefícios S/A, RioCard TI, RioTerminais e SPTA), responsáveis pela gestão de todo o sistema de bilhetagem eletrônica, entre outros serviços, arrecadando os recursos e emitindo os bilhetes do Vale-Transporte, Bilhete Único Carioca, Bilhete Único Estadual, cartões unitários e cartões múltiplos das concessionárias MetrôRio, SuperVia e Barcas S/A, gratuidades e outras modalidades.
O processo de estatização, a começar pelo sistema de bilhetagem, é amplamente respaldado pela Lei, pela doutrina e jurisprudência brasileiras. O Estado pode desapropriar o controle de sociedade anônima, transformando-a em sociedade de economia mista. Quando o acionista se retira da sociedade, recebe um reembolso do valor de suas ações, que tem como base o patrimônio líquido da entidade.
Conforme o Decreto-Lei nº 3.365/41:
“Art. 2º Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
§ 1º A desapropriação do espaço aéreo ou do subsolo só se tornará necessária, quando de sua utilização resultar prejuízo patrimonial do proprietário do solo.
§ 2º Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa.
§ 3º É vedada a desapropriação, pelos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios de ações,
cotas e direitos representativos do capital de instituições e em presas cujo funcionamento dependa de autorização do Governo Federal e se subordine à sua fiscalização, salvo mediante prévia autorização, por decreto do Presidente da República.”
Na doutrina jurídica, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO define a desapropriação “como o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real.”
A noção de utilidade pública se traduz na transferência conveniente da propriedade privada para a Administração. Não há o caráter imprescindível nessa transferência, pois é apenas oportuna e vantajosa para o interesse coletivo. O Decreto-lei 3.365 /41 prevê no artigo 5º, particularmente nas alíneas: h (serviços públicos) e j (serviços de transporte coletivo), as hipóteses de necessidade e utilidade pública sem diferenciá-los, o que somente poderá ser feito segundo o critério da situação de urgência.
Neste sentido, quer pela noção de necessidade pública (urgência), quer pela noção de utilidade pública (conveniência), ficam absolutamente recepcionadas na legislação pátria tanto a encampação de empresas operadoras, quanto a liquidação e desapropriação de todo o sistema de bilhetagem eletrônica em benefício do Estado e do povo do Rio de Janeiro.
Mas a estatização pura e simples de operadoras de transporte ou das holdings controladoras da câmara de compensação tarifária (sistema RioCard) não são suficientes para avançarmos no rumo a um sistema mais justo e efetivo. Não queremos repetir os erros das extintas CTC, CONERJ, RFFSA e tantas outras estatais do transporte público que foram jogadas aos parasitas da corrupção e subsequente privatização.
Ao apontar a criação de uma nova empresa pública, apontamos também que sua gestão e operação devem ser absolutamente claras e transparentes, daí a necessidade de um novo fundo e um conselho estadual com caráter deliberativo e consultivo. O controle público, a gestão democrática e a transparência, já está provado, são os bloqueios mais eficazes contra a ineficiência, a incompetência e a corrupção.
O presente Projeto de Lei, com a instituição da Política Estadual de Mobilidade Urbana e Regional e do Sistema Estadual de Transporte Público e Mobilidade, é apenas o primeiro passo para um novo tempo na evolução dos sistemas de transporte e da forma de circular em nosso Estado.
São vastos os exemplos no Brasil de modelos institucionais semelhantes ao que agora propomos. Decerto que em outros estados e regiões também são muitos os problemas enfrentados pelos usuários de transporte. Entretanto, todas as referências e pesquisas indicam que o sistema do Rio é um o pior e mais caro sistema do Brasil. Desta forma, estamos conscientes que não basta mudar o marco institucional, mas também precisamos reconhecer que não vamos avançar nem um milímetro se não alterarmos essa estrutura.
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